Entendendo a complacência pulmonar

O conhecimento das propriedades mecânicas do sistema respiratório é um assunto fundamental para quem pretende atuar com fisioterapia respiratória. No entanto, frequentemente quando este tema é apresentado pela primeira vez em sala de aula, algumas pessoas costumam dormir, enquanto outras entram em pânico ou apenas riem histericamente diante das definições e fórmulas apresentadas. Mas independente da reação, todo mundo concorda em uma coisa: Na primeira aula, ninguém, absolutamente NINGUÉM entende coisa nenhuma do que foi explicado!
Para escrever esta postagem contei com a ajuda inestimável de Ana Carolina Cury, fisioterapeuta de Minas Gerais, na primeira colaboração virtual deste blog. Espero que gostem!

Pois bem, a postagem de hoje é justamente a primeira de uma série digitada a quatro mãos, feita especialmente para pessoas que apresentam reações adversas a aula de mecânica pulmonar… hoje começaremos falando de complacência pulmonar.

AS FORÇAS QUE MOVEM O AR QUE VOCÊ RESPIRA

O sistema respiratório tem várias funções no corpo, sendo a principal delas a troca gasosa e a homeostase. Uma coisa interessante sobre o sistema respiratório é o fato de que ele pode ser entendido como um conjunto de tubos e conexões que levam o ar até os alvéolos pulmonares. Até aqui, eu não disse nada de novo. Esse parágrafo foi basicamente uma revisão do que você aprendeu no ensino fundamental.
O que geralmente causa dificuldade na compreensão deste sistema é que, ao contrário do que muita gente pensa, esses tubos e conexões não são rígidos como aqueles canos de água que costumam estourar no banheiro. Na verdade, eles são muito mais parecidos com tubos flexíveis, como se fossem canudos de plástico. Esses tubos, ou melhor dizendo: os brônquios e bronquíolos pulmonares possuem propriedades elásticas. Essa flexibilidade é necessária pois o sistema respiratório precisa se adaptar às diferentes pressões geradas no interior do tórax durante a respiração. Para entender melhor estas relações, estudamos a mecânica do sistema respiratório, que é basicamente composto pelo pulmão, vias aéreas e caixa torácica.
Vamos lá então, sem medo de entender que mecânica é essa!

Uma dica importante para continuar lendo essa postagem: Não perca o fôlego !

DEFINIÇÃO DE COMPLACÊNCIA PULMONAR

Toda estrutura elástica tem como propriedade fundamental oferecer resistência à deformação. O pulmão funciona de forma bem parecida. No caso, a capacidade que o pulmão tem de se expandir chama-se complacência.
Os pulmões são órgãos que não possuem movimento próprio. Toda a mudança de volume pulmonar que ocorre durante a inspiração e a expiração é mediada pela contração e relaxamento de músculos que agem sobre o compartimento torácico. Durante a inspiração, os principais agentes  de movimento são os músculos diafragma e intercostais externos. Quando, por alguma razão a capacidade de expansão do tecido pulmonar está diminuída, diz-se que o pulmão está com uma complacência reduzida, ou, em outras palavras, um pulmão com a complacência reduzida se expande com mais dificuldade, pois está “duro”. A diminuição da complacência é particularmente perigosa, pois impõe um maior trabalho aos músculos do sistema respiratório para “abrir” os pulmões e “fazer o ar entrar”. Em uma situação aguda, o paciente pode evoluir rapidamente para a insuficiência respiratória, ou seja, o esforço muscular que ele realiza para respirar passa a não ser suficiente para expandir os pulmões e ele pode para de respirar por fadiga muscular.

Agora vamos começar a complicar um pouco mais:

A definição clássica de complacência afirma que se trata de uma relação entre pressão e volume, ou seja, o quanto o pulmão é capaz de distender-se para acomodar o volume de ar que entra pelas vias aéreas.
É importante ter em mente que associada a variação dos volumes pulmonares ocorre também uma variação da pressão. Na faixa fisiológica normal de variação de pressão (- 5 a – 10 cmH2O) o pulmão é bem distensível, para cada variação de 1 cmH2O ocorre uma variação de 200ml de ar, porém se o pulmão já se encontra expandido, pequenas variações de volume, geram uma grande variação de pressão e impõe maior trabalho aos músculos inspiratórios.
Não entendeu? Que tal sentir na pele?

Faça o seguinte:
#1 – Respire normalmente e perceba o esforço que você faz ao iniciar a inspiração (pulmão em um momento de alta complacência – pequenas variações de pressão = grandes volumes)
#2 – Tente manter a mesma frequência respiratória, só que desta vez respire com o peito bem estufado de ar, sem deixar o ar sair completamente. Perceba como é mais difícil manter a mesma freqüência respiratória quando se está próximo do limite de expansão pulmonar (pulmão em momento de baixa complacência – fica cada vez mais difícil respirar (mesmo com pequena variação de volume).
#3 – Agora faça o contrário: solte quase todo o ar dos pulmões, segure só um pouco de ar e tente manter a mesma freqüência respiratória. Esse também é um momento de baixa complacência, se você mantiver isso por algum tempo algumas unidades alveolares entrarão em colapso. Esse outro extremo de volume pulmonar (volume muito baixo = complacência reduzida) também torna a respiração mais difícil.

A CURVA PRESSÃO X VOLUME

Se você chegou nessa parte do post sem ter nenhuma das reações adversas citadas lá no início, as suas chances de ter um ataque de narcolepsia ou de começar a ver duendes verdes agora é mínima. Vamos em frente. Gráficos são amigos, e facilitam muito a nossa vida, vale a pena gastar um pouco mais de tempo analisando as curvas e suas relações.

Tá vendo esse gráfico aí em cima?
Ele ilustra 3 curvas Pressão X Volume distintas: Uma considerando apenas o Tórax, outra apenas os pulmões e a terceira para o conjunto Pulmões + Tórax (a qual descreve melhor as propriedades do sistema respiratório).
Neste gráfico é possível visualizar um detalhe importantíssimo: A curva Pulmão+Tórax tem um formato parecido com um “S”, indicando que a complacência do sistema respiratório não é constante ao longo do enchimento (ou esvaziamento) pulmonar.
A porção inicial da curva corresponde a mecânica da parede torácica em com volume pulmonar baixo, nesse volume existem vias aéreas colabadas e é preciso uma pressão mínima para abrir essas vias aéreas. A segunda parte é uma subida quase retilínea, ou seja, os aumentos de volume correspondem a aumentos de pressão. È nessa parte da curva que avaliamos a complacência estática. A inclinação dessa curva é a complacência. A porção final da curva representa a hiperdistensão pulmonar, ou seja, todos os alvéolos estão abertos e a partir daí, com o aumento do volume a variação da pressão é muito pequena.

Percebam que a curva do conjunto Pulmões+Tórax tende a ficar horizontal próxima ao VR, indicando uma complacência reduzida em baixos volumes (representa um volume pulmonar muito baixo, com vários alvéolos fechados que precisam receber uma pressão inicial para abrir e começar a insuflar.) e também tende a ficar horizontal próxima a CPT (hiperdistensão pulmonar – representa a distensão máxima, com todos os alvélos abertos. Não é possível distender muito o tecido). Nestas duas situações, é preciso uma grande variação de pressão para se obter pequenas variações de volume.
Você acabou de ler a explicação, em termos científicos, do esforço que se sente para tentar insuflar os pulmões quando eles já estão cheios ou para se tentar respirar com o pulmão quase vazio. Acredito que com esta explicação fica fácil de entender porque devemos estar atentos à inclinação da curva do gráfico para identificar quando a complacência está aumentada ou diminuída.

A fórmula matemática que rege essas forças é: Complacência = Volume / Pressão.

O que pode alterar a complacência?

A complacência pode estar reduzida, causando maior trabalho da respiração para distender todo o sistema e “fazer o ar entrar”. De forma geral, condições que impeçam a expansão e retração pulmonar diminuem a complacência. São condições que produzem fibrose ou edema ou reduzem a parte funcionante dos pulmões, como atelectasias, derrames pleurais, ascites e escoliose.

Outras situações que diminuem a complacência incluem: congestão dos vasos pulmonares, processo inflamatório alveolar com presença de líquido dentro dos alvéolos (redução do surfactante).

A complacência pode estar aumentada em idosos ou em pessoas com enfisema pulmonar. Nestes casos, há perda de fibras elásticas, e uma vez expandido, o pulmão não volta à posição inicial. Nesse caso, o problema está na expiração, com a redução do recuo elástico, que torna mais difícil a saída de ar.

A mesma propriedade que faz o pulmão ser capaz de se distender na inspiração é a que o faz retornar ao seu tamanho (volume) normal na expiração. O tecido elástico armazena energia e, por isso, a expiração normal não necessita de nenhuma ação muscular. No paciente com enfisema podemos observar esse esforço para expulsar o ar pra fora.

Conclusão

Compreender a complacência pulmonar e suas implicações clínicas é essencial para a prática da fisioterapia respiratória, pois esta propriedade influencia diretamente o esforço respiratório e a troca gasosa. Apesar de parecer um conceito complexo à primeira vista, a análise das curvas de pressão e volume permite um entendimento mais visual e intuitivo das forças envolvidas no movimento respiratório. ser capaz de identificar alterações na complacência é fundamental para avaliar o estado clínico de um paciente e direcionar estratégias terapêuticas de forma eficaz. Com um pouco de paciência e prática, a compreensão da mecânica respiratória deixa de ser um “bicho de sete cabeças” e se torna um valioso aliado no tratamento de distúrbios respiratórios.