Pular para o conteúdo

Treino de marcha com suporte parcial de peso

Há mais ou menos 65 milhões de anos, a queda de um meteoro causou a extinção dos dinossauros, e graças a esse evento apocalíptico um grupo bastante peculiar de primatas antropóides pôde descer das árvores e se aventurar em terra firme. Essas criaturas aprenderam a andar em postura bípede (e nunca mais deixaram de fazer isso), desenvolveram uma linguagem própria, criaram ferramentas, organizaram-se em sociedade e atualmente atingiram um nível de desenvolvimento tecnológico tão avançado que as permite passar horas inertes, assistindo Tik Tok e babando pelo canto da boca enquanto esperam um outro primata trazer a comida que foi pedida por um aplicativo de entregas.

Deboches à parte, o fato é que o bipedalismo é nossa forma de locomoção primária. E quando, por qualquer razão, nossa capacidade de deambulação é prejudicada, isso acaba gerando um enorme impacto sobre a nossa qualidade de vida. Diante do exposto, fica fácil entender porque a restauração da marcha é um dos principais objetivos da fisioterapia.

Andar é um ato motor complexo e requer a coordenação dos músculos do tronco e dos membros, além da integração dos sistemas vestibular e proprioceptivo. Historicamente, fisioterapeutas utilizam diversas modalidades terapêuticas para a reabilitação da marcha, desde o fortalecimento muscular até técnicas mais elaboradas de neurofacilitação. Todas essas técnicas são fantásticas, e sem dúvidas de grande importância, porém existe um recurso que merece um destaque especial: O treino de marcha em esteira com suporte parcial de peso.

Antes de continuar a postagem, recomendo esse livro aqui de cima. Super indicado para quem quiser se aprofundar no estudo da marcha humana e você provavelmente conseguirá encontrá-lo na biblioteca de sua faculdade. Porém, deixo um aviso aos navegantes: Não é um livro fácil de se ler.

Porque o suporte parcial de peso é tão importante?

O suporte parcial do peso corporal associado ao treinamento de marcha em esteira consiste no uso de um colete para suportar uma porcentagem do peso corporal durante a caminhada, deixando o corpo “mais leve”. Algumas das vantagens de se usar o suporte parcial do peso corporal junto com a esteira ergométrica são: [1] Controlar a velocidade da marcha imposta ao paciente, [2] controlar a demanda do controle postural / equilíbrio sem risco de queda, [3] permitir várias repetições de um padrão de marcha supervisionado, [4] Possibilitar melhorias na capacidade cardiopulmonar, [5] permitir ao fisioterapeuta analisar e corrigir o padrão de marcha do paciente sem precisar ficar caminhando junto do paciente.

É tudo uma questão aprendizado motor, neuroplasticidade e muita (mas muita) repetição

Ouso dizer que quase todas as nossas intervenções terapêuticas são baseadas nas teorias de controle motor. Nossa compreensão atual da aprendizagem motora, especialmente em crianças, é baseada na teoria dos sistemas dinâmicos, referida na prática como a “abordagem orientada para a tarefa”. Esta abordagem reconhece a importância da tarefa e do ambiente para que o paciente desenvolva soluções motoras eficientes. Também reconhece que aprendemos melhor quando trabalhamos movimentos que se relacionam diretamente com uma atividade diária ou uma tarefa que nos interessa ou motiva. Naturalmente, sem esquecer o fato de que tarefas motoras precisam ser repetidas, repetidas e repetidas para que nosso cérebro as incorpore (exatamente por isso que atletas de alto nível treinam incansavelmente o gestual do esporte).

Como começou

A ideia de usar uma esteira para treinar a marcha começou a partir de pesquisas em modelos animais. Há muito tempo atrás, pesquisadores desejavam saber se o controle da marcha automática vinha de neurônios localizados no cérebro ou na medula e se esse controle poderia ser aperfeiçoado. Para descobrir isso, eles realizaram uma secção cirúrgica na medula vertebral de gatos, interrompendo a comunicação entre o cérebro e os músculos do aparelho locomotor, em seguida analisaram a qualidade dos movimentos da marcha reflexa quando esses animais eram colocados sobre uma esteira ergométrica.

Um dos resultados mais interessantes dessa pesquisa foi de que os gatos que passavam mais tempo na esteira apresentavam um padrão de movimento mais próximo do observado em animais hígidos. Ou seja: A marcha automática é comandada por neurônios localizados na medula e o padrão de marcha reflexa pode melhorar com a repetição do estímulo da marcha.     

A descoberta que os circuitos medulares de gatos respondem ao treinamento em esteira forneceu uma base para a abordagem da recuperação da marcha humana. Nas primeiras vezes que colocamos de pé um paciente que, por qualquer motivo, tenha perdido a capacidade de andar, certamente se apresentará inseguro, debilitado e talvez com problemas de equilíbrio. Na reabilitação convencional (isto é: sem o suporte de peso corporal), esses fatores contribuem para a fadiga e o medo de cair, limitando, portanto, a duração da sessão de fisioterapia. No entanto o uso de um colete para suportar o peso de um indivíduo muda isso dramaticamente. Ao diminuir a carga suportada nas pernas, há menos fadiga e medo de cair, o que permite sessões de prática mais longas e intensas. A redução do peso também dá ao indivíduo a chance de se concentrar na coordenação dos movimentos da marcha e menos no equilíbrio e na sustentação do peso. Além disso, o suporte parcial de peso permite que o fisioterapeuta tenha as mãos livres para corrigir o padrão de marcha e orientar o paciente.

Quando combinamos o suporte parcial de peso com a esteira ergométrica, temos um ambiente de caminhada seguro e estruturado. A velocidade da esteira dita o ritmo o ciclo da marcha, proporciona um alto grau de repetição da marcha com eficiência energética. Um paciente apoiado na esteira é capaz de dar mais passos no mesmo período de tempo e atingir uma velocidade de caminhada mais alta em comparação com a caminhada no solo. Isso fornece a prática e a intensidade necessárias para a neuroplasticidade acontecer.

O que vem depois?

Para se ter uma idéia na aposta que está sendo feita neste sistema de suporte de peso, uma pesquisa está sendo desenvolvida no Center for Applied Biomechanics and Rehabilitation Research, National Rehabilitation Hospital, em Washington, EUA para o desenvolvimento de um protótipo de um equipamento de suporte de peso dinâmico chamado ZeroG.

Trata-se de um mecanismo robótico suspenso por esteiras presas ao teto e que ajusta continuamente a tração garantindo assim o suporte de peso conforme constante durante o deslocamento do paciente sobre obstáculos. Eu babei quando vi o vídeo. Só espero que a relação custo-benefício seja favorável, pois um bichinho desses não tá com cara de ser barato não.

Veja o vídeo abaixo do ZeroG prevenindo uma queda.

4 comentários em “Treino de marcha com suporte parcial de peso”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *